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“A linguagem do Coração"

Depoimentos em "preto e branco” 

Sem sombra de dúvida, a maior dificuldade encontrada por aqueles pioneiros no Brasil foi o idioma. Os brasileiros que chegavam não entendiam o inglês e os americanos, residentes ou de passagem pelo Brasil, pouco ou quase nada falavam em nossa língua. Até mesmo Herb, já há dois anos no Rio, pouco dava "colorido" aos seus depoimentos em português - como ele mesmo mencionou. Hoje entendemos que só através da linguagem do coração, aquela que acontece quando um alcoólico fala com outro, é que esses membros se comunicavam. A recuperação, mesmo no Grupo, tornava-se quase um desafio. Sentia-se muito a falta da tradução do livroAlcoólicos Anônimos; em virtude disso, alguém traduzia uma pequena parte e lia a cada reunião. Com esse quadro de dificuldades, era premente a necessidade de receberem membros que falassem fluentemente os dois idiomas. Talvez por isso, deu-se tanta importância à chegada de Harold, mesmo sendo Antônio P. o primeiro brasileiro a chegar. Vamos relembrar um pouco do encontro entre Herb e o valoroso Harold, numa cartaescrita por ele mesmo e publicada na Grapevineem novembro de 1990.

“A história de A.A. do Brasil começa em junho de 1946, quando Herb D., que havia ficado sóbrio há um ano em Chicago - EUA, vem para o Rio de Janeiro com um contrato para trabalhar como diretor artístico de uma empresa americana de publicidade. Como era novato no programa, sua preocupação imediata foi procurar a Irmandade na cidade onde ele viveria por três anos. Alcoólicos Anônimos, entretanto, era desconhecida no Rio de Janeiro, embora Herb tivesse alguns nomes para fazer contato. Visto que nenhum desses companheiros permanecia por muito tempo no Brasil, a Irmandade ainda não havia criado raízes.

Após alguns meses de tentativas, Herb esperou pelo interesse de bebedores problemas brasileiros (e havia muitos no Rio naquela época), para ajudarem-no a manter-se sóbrio e, levando a mensagem, formarem um Grupo no Brasil. Como em todo o mundo naqueles dias, os alcoólicos no Brasil eram considerados um estorvo social dos quais o verdadeiro lugar era numa clínica psiquiátrica ou na delegacia de polícia.

Em 1947, Herb conseguiu bebedores brasileiros como ingressantes. Um desses era Antônio P., que parou de beber e manteve-se sóbrio com alguma dificuldade, em virtude da falta de literatura traduzida para o português, até sua morte num acidente em 1951. O outro brasileiro afastou-se. As reuniões aconteciam nas casas de companheiros que estavam sóbrios.

O grande apoio a Herb vinha de sua esposa, Libby, uma não alcoólica que o incentivava muito no seu trabalho de levar a mensagem. Herb tinha uma correspondência volumosa com a Fundação do Alcoólico e conseguiu publicar alguns artigos sobre A.A. nos jornais do Rio.

No início de 1948, graças à boa vontade de um bispo episcopal que estava no Rio, Herb encontrou-se com Harold. Ele era um anglo-brasileiro com um caso de alcoolismo tido como perdido. Tinha servido o exército britânico durante a Segunda Guerra Mundial, retornando ao Rio de Janeiro em 1946. Nesse ínterim, havia perdido vários empregos, fora expulso da casa de seus sogros, perdido sua esposa e, por fim, ido morar no porão da casa de um irmão na cidade de Niterói, do outro lado da Baía da Guanabara. O bispo e o irmão de Harold arranjaram um encontro entre os dois para um sábado.

Nesse primeiro encontro, Herb contou a Harold (que havia bebido a manhã toda) a história de como tinha parado de beber substituindo, gole a gole, a bebida de seu copo por água pura, até que passasse a beber somente a água. Como, após muitas tentativas frustradas, ele tinha sido capaz de evitar encher o copo com bebida alcoólica e, assim, evitar o primeiro gole. Ele falou também sobre o plano das vinte e quatro horas, sobre a melhora em sua vida pessoal e empresarial. Por fim, Herb pediu a Harold que pusesse o sistema em prática e que, quando ele parasse de beber, tentasse traduzir o máximo possível do folheto sobre A.A. que lhe entregara. Herb havia trazido esse folheto dos Estados Unidos. Os dois combinaram encontrar-se na quarta-feira seguinte, no prédio da Associação Brasileira de Imprensa, no centro do Rio, para que Harold mostrasse os progressos tidos com a tradução.

Na data marcada Harold teve um apagamento nas primeiras horas do dia, após ter tomado aquele que seria seu último gole, usando o método sugerido por Herb. Apesar disso, naquela manhã, Harold barbeou-se, tomou banho, vestiu roupas limpas, comeu algo com a família incrédula do irmão e colocou-se a caminho - sóbrio, mas com uma terrível aparência - para encontrar-se com Herb, levando algumas páginas do que tinha traduzido. Os dois encontraram-se no salão de café do prédio e, nesse encontro, um novo período de um mês foi fixado para que Harold, sóbrio, terminasse a tradução. Herb iria mandar imprimir a versão em português. Demorou mais do que o previsto, porém no início de 1949, o panfleto estava impresso e começava a ser distribuído a todos que o solicitavam.

Em junho de 1949, quando Herb retornou aos Estados Unidos, havia um Grupo com doze membros sóbrios que se reuniam regularmente todas as segundas-feiras, à noitinha, numa pequena sala da Associação Cristã de Moços do Rio de Janeiro. Herb, no início, apelidou o Grupo de "Os Doze Desidratados". Depois foi formalmente chamado de "O núcleo de A.A. do Rio de Janeiro" e, finalmente, ficou com o nome de "Grupo Rio de Janeiro de A.A."

Harold W.

Data de agosto de 1948 o cadastro de Herb e Harold como membros do "Núcleo A.A. do Rio de Janeiro", com o número da Caixa Postal cedida pela ACM, e o endereço da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) como local de reuniões.

A Unidade no Grupo – como funcionava o Grupo Rio de Janeiro de A.A.

As correspondências da época demonstram claramente o espírito de Irmandade que havia entre os membros do primeiro Grupo de A.A. no Brasil. Os mais antigos demonstravam uma grande preocupação com os novos membros, especialmente com os brasileiros, nas reuniões que aconteciam ora em casa de um membro ora na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Apesar dos vários americanos participantes, era sabido que a maior parte deles estava somente de passagem, a trabalho. Nas entrelinhas de uma carta de 1949, escrita por Antônio P. a Harold, que se encontrava temporariamente no sul do país, observamos a unidade entre aqueles poucos companheiros, quinze ou mais. A carta também falava sobre o problema que tiveram com o tesoureiro do Grupo que havia se afastado com a reserva financeira. A solução encontrada foi uma "coleta secreta" entre os companheiros, para saldar a pequena dívida apresentada e incentivar o retorno do companheiro, o que aconteceu mais tarde. De fato, os problemas de Grupo já existiam, no entanto, as sábias decisões também.

Nesse ano já contava-se com um bom número de brasileiros assíduos no Grupo e várias reuniões eram feitas em português, com tradução simultânea aos que só falavam inglês. Esse fato trouxe tranquilidade a Herb, pois voltaria à América do Norte dentro de pouco tempo, mais precisamente em junho de 1949. Mas antes que isso ocorresse, foi bem-vinda uma norteamericana, Eleanor, uma das primeiras mulheres AAs no Brasil, talvez a primeira. Ela incumbiu-se logo da correspondência com a Sede em Nova Iorque, bem como da tradução do material recebido.

Em 1950, o Grupo passava por problemas financeiros e recorreu à Fundação para aquisição de alguns livros. Vale notar que a Fundação mantinha uma reserva financeira do Grupo brasileiro, a qual nesse ano foi diminuída pela metade a título de contribuição à Sede de onde periodicamente vinham boletins e cartas. Nessa ocasião foi solicitado também um exemplar do Manual do Secretário. Aparentemente os encargos existentes eram o de tesoureiro e o de secretário, que era uma espécie de coordenador geral.

O Grupo fixou seu endereço à rua Santa Luzia, de onde se mudou após um ano, quando começou a eleger mensalmente um coordenador de reuniões. A impressão do livrete "Como Cooperar para uma Obra Meritória", segundo número da literatura em português, deu-se nesse período. Era uma cópia fiel do capítulo sete (Trabalhando com os Outros) do Livro Grande, estrategicamente traduzido quando o Grupo precisava crescer para se firmar e originar novos Grupos.

Em 1951 o companheiro Antônio P. sofreu um acidente de trabalho, teve seu pescoço quase degolado e faleceu quando ainda passava por cirurgias plásticas. Antes de sua morte recebeu uma carta de Harold, da qual reproduzimos o seguinte trecho:

"Você é um herói, Antônio, não há dúvida de que entre todos nós você é o AA número um (primeiro)! Pode ser um dos menores por fora, mas dentro dessa alma enorme e forte, cabemos todos nós folgadamente. Sem dúvida alguma você conseguiu o que eu, pelo menos, ainda não alcancei: traduzir e interpretar bem a vontade e as intenções do Poder Superior, e ser forte na certeza de que ele está sempre ao seu lado, podendo enfrentar cada dia com paz de espírito e serenidade. Que Deus lhe abençoe, meu bom amigo."

Provavelmente Antônio teve dificuldades em se fixar no programa de recuperação devido à linguagem, mas manteve-se firme em suas vinte e quatro horas até o final de sua vida.